Falando Sobre Dor
A entrevistada de hoje da coluna Divã é Claudia Carneiro De Araújo Palmeira, médica da Equipe de Controle de Dor do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP e Doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ela falará um pouco sobre um assunto que, infelizmente, faz parte da vida de todas as pessoas, ou pelo menos de muitas pessoas. Discutiremos sobre dor, porém com ênfase na dor que faz parte de um sintoma, geralmente resultado de diferentes quadros clínicos como veremos. Dra. Margareth: Falemos um pouco de dor como definição e esclarecimento deste sintoma. Quais são os tipos de dor, e existe diferença entre dor aguda e crônica? Dra. Cláudia Carneiro: A dor encontra-se inserida na evolução histórica da humanidade e desde os primórdios foi considerada, juntamente com as doenças, como castigo divino, uma provação existencial ou um mal necessário. Para alcançar o paraíso, deveria ser suportada, pois fazia parte da evolução natural do homem. Diante desta percepção desfocada em relação à dor, o avanço do seu estudo se deu a partir da abolição da visão religiosa, o que possibilitou o entendimento de sua existência física, seus mecanismos e controle. Ao longo do tempo, muitos avanços foram realizados na compreensão dos mecanismos da dor, das dimensões da experiência dolorosa e dos tratamentos mais adequados. No século passado, até a década de sessenta, a dor era definida apenas como uma resposta inevitável à lesão tecidual, sendo pouco valorizados os aspectos afetivos, cognitivos, diferenças genéticas, idade, gênero, ansiedades e expectativas. Acho importante esclarecer que, felizmente, existem pessoas de diferentes áreas que estudam dor e tratam também esse sintoma. Também é importante que todos saibam que existe uma sociedade internacional para o estudo da dor a International Association for the Study of Pain ( IASP), e uma nacional, a Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) vinculada a esta sociedade internacional. A IASP define dor como uma sensação e experiência emocional desagradável associada à lesão tecidual, real ou potencial, ou descritas em termos desta lesão. A dor é sempre subjetiva, pois cada indivíduo aprende a aplicação do termo através de experiências relacionadas a lesões prévias 1,2. A dor pode ser aguda ou crônica, e cada tipo apresenta características peculiares. Dra. Margareth: Você pode explicar sobre essa diferença entre dor aguda e crônica? Dra. Cláudia Carneiro: A dor aguda é a decorrente de um trauma agudo, como no caso de uma lesão por um estímulo mecânico, térmico ou outros, como, por exemplo, em um acidente de carro com trauma, uma queimadura, ou, no paciente, após este ter sido submetido à cirurgia. É uma dor de início recente e de provável duração limitada, há correlação causal e temporal com o trauma e tende a ser mais intensa no início, com melhora do quadro com a cicatrização. Alguns fatores são responsáveis por maior sensibilidade à dor aguda, como idade jovem, sexo feminino, expectativas do paciente sobre a sua dor e se esta será controlada de forma adequada, ou tratada, medo do paciente em relação a este tratamento para controle da dor, principalmente se houver necessidade de procedimento cirúrgico, e estado de ânimo 3,4. A dor crônica de acordo com a IASP define-se como dor que persiste após lesão tecidual e matem-se mesmo após o período de cicatrização. Determinar o final da fase de cura é difícil, no entanto, e em vez disso, a definição clínica comum é um tempo fixo de dor persistente após o seu aparecimento inicial 5,6. Existe sob o ponto de vista funcional, e relativamente arbritrário em alguns quadros, um período para a dor ser considerada crônica, como, por exemplo, no caso de dor lombar crônica período em torno de seis meses, para neuralgia pós-herpética são três meses. A dor crônica pode ser também de origem idiopática, mantendo-se como entidade única sem necessariamente seguir-se a um trauma físico ou procedimento cirúrgico como no caso da fibromialgia 1,5,6. A dor crônica pode ser neuropática, inflamatória ou idiopática. A dor crônica neuropática ocorre quando há lesão ou doença do sistema nervoso central ou periférico, e apresenta uma complexa combinação de sintomas, os quais variam de indivíduo para indivíduo. Essa variação depende de diferentes mecanismos fisiopatológicos, como resultado da convergência de fatores etiológicos, causa do quadro, genotípicos, que é a característica genética de cada um, e até ambientais. A dor crônica inflamatória caracteriza-se por dor associada à presença de reação inflamatória local com edema, calor e rubor, é a dor presente nos casos de artralgias, dores nas articulações. A dor crônica idiopática, ou dor de origem desconhecida, refere-se a um grupo de quadros nos quais os mecanismos envolvidos ainda não são completamente conhecidos, como no caso da fibromialgia, mas caracteriza-se por dor moderada a intensa generalizada com diminuição do limiar álgico. A ausência de infiltração inflamatória, lesão nervosa ou tecidual, e quadro psiquiátrico grave nestas condições representam um diagnóstico de exclusão. Na maioria dos casos os pacientes apresentam diferentes quadros associados, com dor neuropática e inflamatória, ou dor inflamatória e idiopática, e fazem uso de analgésicos e fármacos adjuvantes para ambas as condições 5,6,7. É importante salientar que os pacientes com dores crônicas apresentam maior frequência de dor aguda diante de um trauma ou cirurgia, podendo ter dor pós-operatória severa e de difícil controle, por exemplo, necessitando que o tratamento da dor crônica seja mantido com os analgésicos e adjuvantes que estes pacientes já fazem uso. É também de extrema importância o controle adequado da dor aguda, por ser um estímulo álgico, doloroso, adicional, em consequência ao trauma ou ao procedimento cirúrgico em pessoas que têm maior sensibilidade à dor por terem dores crônicas 8. Dra. Margareth: Você falou sobre, no sexo feminino, a dor ser maior, dando a entender que as mulheres sentem mais dor. Poderia explicar um pouco sobre isso. Dra. Cláudia Carneiro: Os fatores sexo e idade modificam a experiência dolorosa em animais e seres humanos. Várias doenças e síndromes que cursam com dor têm prevalências e se apresentam de formas diversas em homens e mulheres, assim como entre adultos e idosos 3,9,10. Diferenças na percepção dolorosa têm sido documentadas na literatura, onde mulheres percebem e relatam mais dor que homens, procuram auxílio médico com maior frequência que homens e fazem uso de analgésicos em maior quantidade. Comparadas aos homens de idade semelhante, as mulheres correm maior risco de desordens relacionadas ao estresse e dores crônicas como, por exemplo, na fibromialgia 10,12. As mulheres relatam dor mais intensa, episódios mais frequentes, mais difusos anatomicamente e mais duradouros do que os homens com doenças semelhantes, mesmo quando alterações específicas para o sexo, como dor urológica masculina e ginecológica, são excluídas da análise. Nos últimos vinte anos várias evidências surgiram a respeito das diferenças na resposta à dor entre os sexos, incluindo o limiar de dor e a tolerância aos tratamentos estabelecidos 3,14,15. Mulheres têm maior prevalência de várias síndromes dolorosas que os homens. Síndromes como fibromialgia, síndrome de cólon irritável, algia pélvica crônica, cistite intersticial, dores musculoesqueléticas e quadros autoimunes, como a artrite reumatoide e o lúpus, são mais frequentes nelas. O sexo feminino também é fator preditor de dor pós-operatória, principalmente quando associado à ansiedade, dor prévia e idade jovem. Os fatores sociais, culturais e biológicos associados às diferenças na percepção da dor entre os sexos mostram-se extremamente relevantes 3,12,13. Dra. Margareth: E quanto ao gênero, acho importante esclarecermos essa questão entre sexo e gênero. Há diferenças à percepção à dor entre os gêneros também? Dra. Cláudia Carneiro: É importante definirmos os termos sexo e gênero, pois, até a poucos anos, a grande maioria dos trabalhos usava os termos de forma indiscriminada. O grupo de estudos especiais para sexo, gênero e dor da IASP elaborou um consenso de diretrizes para pesquisa nessa área, e ficou determinado que gênero e sexo não são sinônimos. Sexo se refere às diferenças biológicas entre homens e mulheres de acordo com seus órgãos reprodutivos, enquanto gênero se refere a uma questão mais complexa relacionada a aspectos psicológicos, ambientais e socioculturais. Diferente do sexo, o gênero tem relação com as expectativas sobre o papel a ser desempenhado pelo homem ou pela mulher em determinada sociedade, apresentando variações entre exclusivamente feminino e exclusivamente masculino 12,14. Crenças e expectativas sobre a percepção da dor relacionadas ao gênero são aprendidas ao longo da vida, influenciadas pelo meio ambiente e têm demonstrado importância significativa nas diferenças entre homens e mulheres à dor. No que se refere ao comportamento em resposta a quadros dolorosos, o papel esperado para o gênero feminino é estereotipado com mais queixas e maior sofrimento, enquanto que para o gênero masculino é esperado comportamento mais estoico 9,14. Dra. Margareth: Nessa questão da diferença à dor entre os sexos, qual a explicação a esse fenômeno. Poderia explicar isso de modo mais simples, sei que é um assunto complexo, mas por ser tão interessante é importante para as pessoas serem esclarecidas a respeito. Dra. Cláudia Carneiro: Vou tentar, afinal como foi dito não é um assunto simples, mas é importante que as pessoas sejam esclarecidas, a ciência e o conhecimento a partir das pesquisas precisam chegar às pessoas, afinal esse é o objetivo do pesquisador, divulgar o conhecimento a todos, eu acredito. Muitos são os fatores considerados responsáveis pelas diferenças entre os sexos na percepção da dor e pela grande prevalência de dores crônicas em mulheres. Mais recentemente, fatores biológicos como os hormônios gonadais têm sido levados em consideração para explicar as diferenças na percepção à dor entre homens e mulheres. Inúmeros dados na literatura, trabalhos feitos em animais e em seres humanos dão suporte a esta possibilidade. Trabalhos experimentais e clínicos indicam o envolvimento dos hormônios sexuais em diversas síndromes dolorosas 3,9,19,11,12,13. Dra. Margareth: E quanto ao tratamento da dor, poderia falar um pouco sobre? Dra. Cláudia Carneiro: O tratamento da dor é multidisciplinar, devendo ser feito antes de tudo um diagnóstico correto do quadro doloroso, dos fatores envolvidos, isso significa que o paciente deve ser atendido por um médico com formação adequada, ou seja, com um especialista no assunto, alguém que estudou para isso. Tratar a dor do paciente é fundamental porque com dor não há qualidade de vida, e o sofrimento é algo que impossibilita as pessoas a terem uma vida produtiva em todos os sentidos, e isso se reflete também na dificuldade de se relacionar de forma satisfatória com o seu entorno, isto é, com o seu meio, seja familiar e de trabalho. A dor crônica é de mais difícil controle que a dor aguda, claro porque envolve vários fatores, mas a dor aguda também é importante e precisa ser tratada de forma adequada para que não se torne crônica. Existem diferentes formas de se tratar a dor, com diferentes opções que vão desde a farmacoterapia ao tratamento intervencionista, tudo depende do quadro em questão. Mas como disse antes tudo começa com um diagnóstico correto, e depois com o esclarecimento do paciente sobre sua dor, e, nesse caso, a verdade é fundamental e isso implica em não prometer milagres e buscar uma solução, sempre explicar ao paciente que muitas vezes é preciso de tempo e paciência, mas que durante o tratamento este será amparado e se manterá participativo de seu tratamento. Com um vínculo estabelecido entre médico e paciente, o que se dá com um profissional sério e com formação adequada que ampare seu paciente, mesmo diante dos casos mais complicados a possibilidade de alívio já faz diferença. Dra. Margareth: Muito obrigada pelas explicações, tenho certeza de que serão úteis. Dra. Cláudia Carneiro: Eu que agradeço a oportunidade aqui de esclarecer as pessoas, esse deve ser nosso objetivo, não é mesmo? Muito obrigada.
Referências Bibliográficas
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Fontes e Referências
Margareth dos Reis – Psicóloga e terapeuta sexual